domingo, 27 de setembro de 2009

Sujeitos sociais e interesses envolvidos no processo de abolição da escravidão no Brasil - século XIX

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA NO CASO DE UTILIZAÇÃO DESTE TEXTO:

TURINI, Leide Alvarenga. Sujeitos sociais e interesses envolvidos no processo de abolição da escravidão no Brasil - século XIX. ESEBA/UFU, Uberlândia, 2007.

Entre os séculos XVI e XIX, cerca de 3,6 milhões de negros africanos foram traficados para o Brasil, para servir de mão-de-obra à exploração dos produtos primários produzidos pela antiga colônia de Portugal, bem como para atividades domésticas braçais de todo o tipo. A escravidão no Brasil foi tão extensa que, em meados do XIX, o Rio de Janeiro possuía a maior concentração urbana de escravos do mundo ocidental desde o fim do Império Romano: 110 mil, de um total de 226 mil habitantes. (Sérgio Gardenghi Suiama, 2006)

O Brasil foi o último país do continente americano a abolir legalmente a escravidão e isto aconteceu com a aprovação da Lei Áurea em 13 de maio de 1888. De acordo com a interpretação oficial, a abolição foi o resultado de uma ação humanitária e heróica da Princesa Isabel, responsável por assinar a lei quando ocupava o governo brasileiro em substituição ao seu pai, D. Pedro II, em 1888.
Entretanto, conforme afirma o historiador Sidney Chalhoub (1989), o 13 de maio como uma data que simboliza a concessão da liberdade aos escravos por um ato humanitário de uma princesa está cada vez mais desmoralizado. Muitos historiadores, na atualidade, constroem outras interpretações menos simplistas que essa, enfatizando as pressões e os interesses envolvidos no processo que culminou na extinção legal da escravidão no Brasil. Algumas dessas interpretações menos simplistas acentuam as ações dos líderes abolicionistas no processo de abolição da escravidão. As interpretações que enfatizam o movimento abolicionista se cruzam, por vezes, com outras interpretações que apresentam também os interesses dos cafeicultores do Oeste de São Paulo, os quais pressionavam o governo monárquico em defesa da substituição do trabalho escravo pelo trabalho livre e assalariado; ou ainda as pressões da Inglaterra que, desde as primeiras décadas do século XIX, procurava limitar o tráfico de escravos africanos para o Brasil, passando a pressionar o governo brasileiro, após a independência, pela extinção definitiva do trabalho escravo no país.
Com relação ao movimento abolicionista, é inegável a importância da atuação de líderes como Joaquim Nabuco, José do Patrocínio, André Rebouças, Rui Barbosa, Luis Gama, entre outros. A intensa campanha por eles promovida contra a manutenção do trabalho escravo no Brasil, por meio de jornais, agremiações, livros, reuniões públicas, panfletos, entre outros, principalmente a partir de 1880, evidenciam a relevância do movimento. Entretanto, muitos historiadores questionam a interpretação que considera os participantes do movimento abolicionista como aqueles que melhor representaram os interesses dos escravos e, portanto, como os principais sujeitos sociais do processo de abolição da escravidão. Para a historiadora Célia Maria de Azevedo, não se pode deixar de refletir também sobre os interesses e a visão reformista e legalista de muitos abolicionistas, para os quais não interessava que a abolição saísse da legalidade institucional. Dito de outra maneira: se a abolição, na segunda metade do século XIX, era praticamente inevitável, muitos abolicionistas preferiam que ela acontecesse sob o controle da classe política e não sob o controle dos próprios escravos.
De acordo com Célia Azevedo, preocupados com a possibilidade de que a abolição escapasse dos quadros estritamente parlamentares, os abolicionistas procuravam manter o controle institucional sobre o movimento das ruas com o objetivo de reordenar o social a partir das próprias condições sociais vigentes, sem nunca enveredar por utopias revolucionárias. Entenda-se por utopias revolucionárias os projetos que visavam uma transformação profunda na estrutura social e econômica do país, a qual possibilitasse a inclusão dos escravos e dos pobres e livres. Isto significa, que o abolicionismo, tal com o pretendido pelos abolicionistas, deveria por um lado lutar pela libertação dos escravos e a sua integração social, mas, por outro, precisaria reunir todos os esforços para manter o poder da grande propriedade, ou mais precisamente, o poder do capital[1].
No que diz respeito aos cafeicultores do Oeste Paulista, os seus interesses na abolição eram explícitos. Não defendiam propriamente a “causa abolicionista”, mas a possibilidade de introduzir o trabalho livre e assalariado nas suas lavouras e em outras atividades a elas vinculadas. Desde as primeiras décadas do século XIX o café tornara-se o principal produto de exportação do Brasil. Em sua primeira fase (1830-1860) a produção cafeeira concentrou-se no Vale do Paraíba (entre as províncias do Rio de Janeiro e São Paulo) e na Zona da Mata Mineira, alicerçando-se no trabalho escravo. O escoamento da produção para o mercado externo ocorria principalmente por meio do Porto do Rio de Janeiro. Os “barões do café” tornaram-se o grupo social de maior poder econômico e político do Império. A partir de 1870, a produção cafeeira expandiu-se e chegou às terras férteis do chamado Oeste Paulista. O Porto de Santos tornou-se o principal ponto de escoamento da produção. Entretanto, nesta região, já não era possível a utilização da mão-de-obra escrava tal como nas regiões tradicionais. As pressões feitas pelos trabalhadores escravos e pelo movimento abolicionista, aliadas à extinção do tráfico negreiro em 1850 e ao fato de que, naquele contexto, a oferta de mão-de-obra escrava era cada vez menor, fizeram com que os cafeicultores da nova região do café buscassem uma alternativa que garantisse os seus interesses. Passaram, então, a pressionar o governo brasileiro para que acabasse legalmente com a escravidão e estimulasse a entrada de trabalhadores europeus no Brasil. Portanto, a abolição da escravidão e a introdução do trabalho livre e assalariado significavam alternativas para a continuidade da expansão da economia cafeeira para os cafeicultores do oeste paulista.
Com relação às pressões inglesas pelo fim da escravidão no Brasil, entre as principais razões que as justificam podemos destacar duas: a primeira, relacionada ao fato de que o processo de industrialização na Inglaterra, iniciado desde a segunda metade do século XVIII, aumentou a produção e ensejava, portanto, a expansão do mercado consumidor. Tal expansão pressupunha mercados onde a mão-de-obra fosse constituída principalmente por trabalhadores livres e assalariados (leia-se consumidores). Havia também a perspectiva de que o dinheiro gasto com a compra de escravos fosse investido em negócios relacionados à compra de produtos industrializados ingleses; a segunda razão diz respeito ao fato de que os colonizadores ingleses estabelecidos na África não viam com bons olhos o tráfico de escravos, o qual colocava em risco a disponibilidade de mão-de-obra para o trabalho na agricultura e na mineração, atividades que desenvolviam no próprio continente africano. Desta forma, desde o século XVIII, a Inglaterra pressionava os governos de outros países pelo fim do trabalho escravo.
Essas considerações reforçam a afirmação feita na introdução de que a abolição foi um processo que resultou das pressões e dos interesses envolvidos. Entretanto, muitas vezes, essas interpretações desconsideram ou colocam em segundo plano as ações dos próprios trabalhadores escravos no processo, caracterizando-os como vítimas passivas, incapazes de qualquer ação autônoma. Se os interesses e as pressões exercidas por abolicionistas, cafeicultores paulistas e ingleses foram importantes para o processo de abolição legal da escravidão no Brasil, é imprescindível reconhecer também a pressão exercida por aqueles que, além da liberdade jurídica, lutavam por uma mudança mais profunda nas suas condições de vida e de trabalho: os próprios trabalhadores escravos.
O reconhecimento das formas de luta e estratégias de sobrevivência cotidiana empreendidas por homens e mulheres escravizados no Brasil é fundamental para o questionamento de uma interpretação que os caracteriza como seres passivos e alienados. Desde o século XVI, inúmeras formas de luta e resistência marcaram a trajetória de vida e trabalho dos escravos africanos e seus descendentes no Brasil. Não apenas por meio de ações explícitas como rebeliões nas fazendas, fugas, formação de quilombos, assassinatos de feitores e proprietários, suicídios, entre outros, mas também por estratégias adotadas no cotidiano, as quais implicavam, muitas vezes, na negociação e no alargamento de suas alternativas de sobrevivência no cativeiro. Por exemplo, quando eram vendidos por um proprietário a outro, muitos escravos buscavam diferentes alternativas para que o negócio não se concretizasse:

Manifestavam desagrado pelo novo senhor, sendo então trocados por outros escravos na negociação; procuravam padrinhos que os protegessem ou mesmo que os comprassem; fugiam quando a venda estivesse acertada; ou praticavam ações mais violentas que os levassem às malhas da justiça, tornando assim o negócio impraticável (...) outros tantos tornavam-se “imprestáveis” depois de vendidos. Assim depreciavam seus próprios valores de mercado e davam origem a longas disputas senhoriais entre comprador e vendedor a respeito da boa fé na transação e da qualidade do escravo negociado. (LARA, 1989, p. 9)

Outras vezes, os escravos procuravam ampliar as suas possibilidades de sobrevivência no cativeiro por vias mais institucionalizadas na sociedade escravista do século XIX. Challoub cita o caso da Lei do Ventre Livre assinada em 1871, a qual tornava livre todos os filhos de escravos nascidos a partir daquela data. Embora frágil e insuficiente, uma vez que o “liberto” ficava sob a tutela do proprietário até os 8 ou 21 anos[2], a lei reconhecia o direito dos escravos ao pecúlio que conseguiam acumular e colocava a possibilidade de que comprassem a sua alforria mediante indenização. O autor argumenta:

A chamada ‘Lei do Ventre Livre’ foi na verdade muito mais do que aquilo que normalmente se afirma nos livros didáticos – sejam eles de ‘direita’ ou de ‘esquerda’. Em algumas de suas disposições mais importantes, como aquelas que dizem respeito ao pecúlio dos escravos e ao direito à alforria por indenização de preços, a ‘Lei do Ventre Livre’ representou tanto o reconhecimento legal de uma série de direitos que os cativos vinham adquirindo pelo costume, quanto a capitulação das classes proprietárias diante de alguns objetivos das lutas dos negros. (CHALHOUB, 1989, p. 40)

Portanto, a legislação abolicionista do século XIX no Brasil, embora frágil, insuficiente e algumas vezes inócua para os trabalhadores escravos, trouxe evidências dos conflitos, tensões e disputas que a questão da abolição suscitava entre as elites nacionais, estrangeiras e os trabalhadores escravos. Em retrospectiva cronológica a legislação abolicionista inclui a Lei Eusébio de Queirós que extinguiu o tráfico de escravos (1850), a Lei do Ventre Livre (1871), a Lei dos Sexagenários (1885) e a Lei Áurea (1888). Não se pode deixar de mencionar, neste contexto, a Lei Bill Aberdeen (1845), lei inglesa que autorizava a sua marinha a prender qualquer navio negreiro que atravessasse o Atlântico, a partir daquela data.
Assim, na reflexão acerca do trabalho escravo no Brasil e de sua extinção legal no século XIX é preciso considerar que os escravos, como sujeitos sociais do processo, “estabeleceram intrincadas relações com seus companheiros de cativeiro, com seus senhores e alheios, com ex-escravos e com homens e mulheres livres e pobres. Construíram laços familiares, alianças e solidariedades econômicas, culturais e sociais que acabaram por construir uma cultura e um saber escravo – base de muitas estratégias de sobrevivência e de muitos projetos de liberdade”[3].
Por outro lado, é preciso também considerar que a abolição da escravidão não representou o estabelecimento de um novo tempo com relações de trabalho mais justas e harmoniosas no Brasil. No período pós-abolição, as mesmas continuaram marcadas pela exploração e violência, como discutiremos em nossos estudos posteriores e, mesmo nos dias atuais, perduram formas de trabalho escravo ou semi-escravo no Brasil[4].

Referências bibliográficas:

AZEVEDO, Célia Maria Marinho de. Onda negra, medo branco. O negro no imaginário das elites - século XIX. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

CHALHOUB, Sidney. Os mitos da abolição. In: TRABALHADORES – escravos. Campinas, Secretaria Municipal de Cultura, Esportes e Turismo, 1989, p.36-40.

LARA, Silvia Hunold. Campos da Violência. Escravos e Senhores na capitania do Rio de Janeiro - 1750-1808. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.

________________Trabalhadores Escravos. In: TRABALHADORES – escravos. Campinas, Secretaria Municipal de Cultura, Esportes e Turismo, 1989, p.4-19.

MARQUES, Adhemar. Pelos Caminhos da História. Curitiba: Positivo, 2006.

Roteiro de Atividades:

Introdução

1- Na sua opinião, o que o historiador Sidney Chalhoub quis dizer com a afirmativa:
“(...) o treze de maio como uma data que simboliza a concessão da liberdade aos escravos por um ato humanitário de uma princesa está cada vez mais desmoralizado.”

2- O texto menciona duas interpretações diferentes a respeito do que levou à abolição (término, extinção legal) da escravidão no Brasil, no dia 13 de maio de 1888.
A- De acordo com a interpretação oficial:
B- De acordo com a interpretação não oficial:

Os interesses e pressões do movimento abolicionista pelo fim da escravidão

3- Alguns historiadores, ao discutirem as ações dos abolicionistas (advogados, políticos, médicos etc) para acabar com a escravidão, passam a idéia de que a maior motivação dessas pessoas era assegurar os interesses dos escravos e, portanto, a inclusão dos mesmos na sociedade, como cidadãos com plenos direitos. Entretanto, a historiadora Célia M. Azevedo afirma que esta visão não pode ser generalizada, uma vez que muitos abolicionistas eram reformistas e legalistas e não tinham interesse em que a abolição saísse da legalidade institucional.
Explique o que você entendeu sobre esta questão.

Os interesses e pressões dos cafeicultores do Oeste Paulista pelo fim da escravidão

4- De acordo com o texto, por que os cafeicultores do Oeste paulista, ao contrário dos cafeicultores de outras regiões e ao contrário de outros proprietários de terras do Brasil, eram favoráveis ao fim da escravidão? A partir do texto, explique com as suas palavras.

Os interesses e pressões dos ingleses pelo fim da escravidão

5- De acordo com o texto, os ingleses também tinham interesse na abolição da escravidão no Brasil. Explique, com as suas palavras, as principais razões deste posicionamento:
A- Queriam expandir o mercado consumidor dos seus produtos industrializados:
B- Queriam estimular o investimento em negócios de produtos industrializados ingleses:
C- Colonizadores ingleses instalados na África não queriam o tráfico de escravos:

Os interesses e pressões dos próprios trabalhadores escravos pelo fim da ecsravidão

6- Os líderes abolicionistas, os cafeicultores do Oeste paulista, os ingleses e os trabalhadores escravos tinham interesse pelo fim da escravidão no Brasil e pressionaram o governo brasileiro para que isso acontecesse. Entretanto, os interesses dos trabalhadores escravos eram bem diferentes dos demais sujeitos sociais, principalmente em um aspecto fundamental. Cite-o e comente-o.
7- Durante todo o período de vigência do sistema escravista no Brasil (século XVI a XIX), inúmeras formas de luta e estratégias de sobrevivência foram adotadas pelos trabalhadores escravos para resistirem à escravidão. Cite-as.

Notas:

[1] AZEVEDO, Célia Maria Marinho. Onda negra, medo branco. O medo no imaginário das elites do século XIX. 1987, p.89.

[2] A lei determinava que o filhos de escravas nascidos após a promulgação da mesma deveriam ficar com a mãe até os 8 anos de idade. Então, se o proprietário optasse por libertá-lo receberia uma indenização do Estado brasileiro; caso contrário, o proprietário utilizaria os seus serviços até os 21 anos de idade.

[3] LARA, Silvia Hunold. Trabalhadores Escravos. In: TRABALHADORES – escravos. Campinas, Secretaria Municipal de Cultura, Esportes e Turismo, 1989, p.18-19.

[4] Segundo o jornalista Leonardo Sakamoto, a escravidão no Brasil de hoje “não se resume à terra de ninguém que é a região de expansão agrícola amazônica, mas está presente nas carvoarias do cerrado, nos laranjais e canaviais do interior paulista, em fazendas de frutas e algodão do Nordeste, nas pequenas tecelagens do Brás e Bom Retiro da cidade de São Paulo”, entre outros. AGÊNCIA CARTA MAIOR. Dossiê Trabalho Escravo. Trabalho Escravo no Brasil de hoje. 09/12/2003.

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